O Rio de Janeiro registrou em janeiro uma queda de 45% no número de mortes por intervenção de agentes do Estado em comparação ao mesmo mês de 2023. Os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram ainda que foram 57 mortes no mês, o menor número apontado para janeiro desde 2016.
Em uma avaliação precipitada é possível estabelecer a relação entre o uso de câmeras corporais por agentes de segurança com a redução das mortes, como divulgado pela imprensa na última semana. Porém, a análise não se sustenta justamente porque menos da metade do efetivo operacional da Polícia Militar (PMERJ) utiliza o equipamento em serviço.
Ao Brasil de Fato, a Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que 12.719 câmeras individuais estão em uso nos batalhões do estado, assim como em algumas unidades especializadas, ao longo de um processo de 18 meses. Segundo o último levantamento disponível do Ministério da Justiça, com dados de 2022, o estado do Rio conta com efetivo de 29.591 policiais operacionais, ou seja, que atuam no patrulhamento ostensivo. Destes, 43% usam a câmera em serviço.
Além disso, longe da solução definitiva para a violência policial, a implementação da câmera corporal para agentes de segurança apresenta dificuldades que comprometem a efetividade da tecnologia na elucidação de crimes, sobretudo os que envolvem violações de direitos humanos na abordagem policial. A análise é da pesquisadora Marilha Grau, do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“O que tem sido observado, acompanhando as audiências, é de fato uma resistência dos policiais em entregar essas imagens. Isso precisa ser dito. Embora essas imagens estejam sendo registradas, a gente também não sabe exatamente como. O policial decide quando ele vai começar a registrar”, pontua a advogada que também é professora colaboradora do curso de Segurança Pública da UFF.
Marilha detalha as investigações da sua pesquisa relacionada ao uso da câmera nos uniformes da PM do Rio como objeto de prova na Justiça Criminal. O equipamento foi adotado por agentes do BOPE há apenas um mês, após decisão do STF frente à resistência do governo do Estado.
“É preciso pensar não só nesse registro, mas na democratização do acesso para que haja transparência na atuação policial como um todo”, afirma a professora.
Marilha Garau: Até bem pouco tempo atrás, não existia esse recurso. O fato de o policial dar o depoimento na delegacia e ser reduzido a termo já fazia com que houvesse uma presunção de que aquilo é verdadeiro.
O Brasil não é o primeiro país do mundo a implementar câmeras corporais nos agentes. O que a gente vê aqui, principalmente pela experiência de São Paulo, que já é de mais tempo, é que no primeiro momento vem para dissuadir a atuação abusiva dos policiais.
Mas por outro lado, a implementação das câmeras é uma pauta antiga justamente por conta desse fator. Os policiais têm a fé pública pela simples palavra. Na prática, se um sujeito chega dizendo na audiência que foi agredido por um policial, do ponto de vista da legislação, essa prisão é ilegal.
O flagrante delito não permite a violência policial. Na audiência é a palavra da vítima contra do policial.
Na existência da câmara corporal tem a preservação da prova constituída do próprio flagrante delito. Tudo isso do ponto de vista ideal. Mas aí a gente chega dentro do Judiciário e começa a ver as dinâmicas do dia a dia e como isso está se sustentando na prática.
E o real impacto das câmeras até agora?
A gente vai precisar de um pouco mais de tempo para entender isso no Rio de Janeiro. O que eu via antes da implementação das câmeras de segurança era justamente uma falta de credibilidade. Ou seja, a palavra do policial valendo muito mais, embora o policial nem esteja presente na audiência de custódia.
O que acontecia na prática: o defensor público ou o próprio magistrado preenchia uma documentação para dizer que o acautelado foi vítima de algum tipo de violência durante a abordagem. Esse relato ia para o Ministério Público e muito pouco era feito, normalmente o arquivamento.
Depois da utilização da câmera corporal, acho que ainda é muito tímida a mudança. Tenho visto isso de dentro do MP, da auditoria militar, e do Nudedh [Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria do Rio], dando continuidade à pesquisa.
Há uma requisição sim das imagens da câmera para entender qual foi o contexto. Esses profissionais estão fazendo esse pedido, mas o que tem acontecido na prática é que não se dá continuidade. Ainda é muito recente a utilização em massa das câmeras corporais. Vi casos recentes de policiais que foram denunciados por não estarem utilizando a câmera, esse é um ponto muito positivo.
É possível relacionar a redução de mortes por agentes do Estado com o uso das câmeras no uniforme?
Eu acho que é um pouco precipitado correlacionar essa informação. O ISP divulgou esses dados, mas a gente não sabe qual foi a base de análise, qual foi a base de dados que eles utilizaram, como foi a construção disso.
Há ainda o fato de que o resultado pode ser multifatorial. Então eu realmente acho precipitado, justamente por não termos número suficiente a título de transparência da utilização das câmeras corporais. Embora haja indícios, não há dados suficientes para afirmar com convicção.
A câmera corporal pode ser considerada uma garantia para o policial que atua dentro da legalidade?
Vejo duas possibilidades no uso de câmeras. A primeira é essa mais óbvia de redução da letalidade e das abordagens violentas da Polícia Militar justamente por estarem sendo gravados.
Depois, e me aparece também algo muito relevante, é o fato de ter um contexto da prisão, da ação policial gravada e dos fatos que estão sendo imputados a um futuro réu também gravados. Em ambas situações não é prejudicial para o policial.
Pensar em democratizar a atuação das polícias não precisa ser um problema. A câmera corporal precisa ser percebida também pelos profissionais da Segurança Pública como uma oportunidade de autoproteção, de produção de prova defensiva.
Quais as dificuldades relacionadas ao uso da câmera no dia a dia dos policiais e como prova de abusos?
O que tem sido observado, acompanhando as audiências, é de fato uma resistência dos policiais de entregar essas imagens. Isso precisa ser dito. Embora essas imagens estejam sendo registradas, a gente também não sabe exatamente como.
O policial decide quando ele vai começar a registrar.
A título de proteção do próprio policial isso é interessante porque ele se vê em uma situação de perigo e aciona a câmera corporal. Por outro lado, pensando do ponto de vista sobretudo processual e quando há avaliação da letalidade policial, isso é um problema porque há um recorte.
A partir disso a gente já começa a questionar esse lugar das câmeras como a salvação da lavoura, que vai resolver todos os problemas da Polícia Militar. Seja a título de prova, seja a título de redução da letalidade.
Como você disse, antes das câmeras o relato das vítimas sobre violência policial não tinha credibilidade na audiência de custódia. O que mudou nessa dinâmica?
A câmera não mudou nada em relação à credibilidade da violência policial nas audiências de custódia. Quando há um relato de violência policial continua-se o procedimento que é o registro de um protocolo, feito principalmente pela Defensoria Pública. Então na ponta eu não vejo grandes alterações na forma como o Judiciário vem fazendo seu trabalho, inclusive essa é uma das minhas críticas mais duras.
Se há uma tecnologia implementada para que haja outras fontes de prova, o auto de prisão em flagrante deveria ser acompanhado dessas imagens para não se basear única e exclusivamente no testemunho policial.
Na prática, a vítima continua sendo desacreditada no caso da ocorrência de violência policial.
Como você avalia a utilização dessa tecnologia nos casos relacionados à violência policial?
Um ponto que precisa ser pensado é que de nada adianta essa implementação de tecnologias avulsas se na prática há dificuldade de acesso dessas câmeras. É o que eu tenho visto e muito, sobretudo na fase de julgamento dos processos propriamente ditos. Porque na audiência de custódia essas imagens já não aparecem.
Tenho visto na prática que muitas vezes não tem as imagens, principalmente na fase de produção de provas já se perdeu, não é disponibilizada.
Não adianta fazer de forma isolada, a gente precisa pensar uma reestruturação na forma de agir da polícia.
O que a gente tem observado é que embora haja tecnologia disponível, essa tecnologia é pouquíssima utilizada para elucidar crimes, principalmente os envolvendo violência policial.
O uso da tecnologia precisa ser melhor pensado e melhor adequado ao dia a dia desse profissional, porque simplesmente implementar a tecnologia sem pensar nas nuances acaba criando mais um entrave, e menos uma solução dentro desse cenário.
Quais os entraves no caminho dessa prova no judiciário?
Posso te dizer sem sombra de dúvidas que a maior parte dos casos não tem as imagens disponibilizadas na audiência de custódia, o que seria ideal. Se há câmera corporal acompanhando a prisão em flagrante, a abordagem policial, o ideal seria que na audiência de custódia essas imagens já chegassem para o juiz. Mas não é o que acontece.
É preciso pensar não só nesse registro, mas na democratização do acesso a esse registro para que haja transparência na atuação policial como um todo. O que continua prevalecendo é a palavra do policial dentro do processo e as imagens se tornam acessórias. Seja um processo de letalidade policial, seja para apurar fatos criminosos.
Na prática, pouquíssimos casos têm disponibilizado essas imagens a título de elucidação de crimes. Quando há relatos de violência o MP e a Defensoria Pública se mobilizam um pouco mais para buscar e fazer uma solicitação rápida. As imagens vem chegando mais por esse por essa via na elucidação de um caso de violência de Estado.
Ainda há muita dificuldade de se conseguir essas imagens como prova processual propriamente dita. As imagens da câmera corporal tem sido muito pouco mobilizadas no processo justamente por conta dessas burocracias